Prática d’A Coreógrafa
Estar acompanhada de muitas mulheres. Colegas de trabalho, mas não só. Mas só mulheres apaixonadas. Às vezes entretanto nem tanto, podem apenas estar prometidas. Tudo é hiper-real. Como reviver o modo como algo tem sido feito por um longo período de tempo. Sem nunca no entanto esquecer que tudo é pura materialidade. Pesos e tensões a fundir, dividir, multiplicar tanto partes microscópicas quanto corpos inteiros. O que se dá se dá no encontro. No encontro não perder jamais a simulação. Simular é a condição dessa vida e simular é diferente de simulacro. Não neutralizar a ambiguidade. São cenas de ambiguidade explícita. Conservar sempre a pergunta: quem sou eu?
Manter o mistério. Não criar um melodrama sem saída. A experiência é física e química. A única coisa absolutamente real é a morte. É preciso aprender a morrer antes de morrer. Os corpos estão sempre em queda. Cair por completo ao menos uma vez. Não manter a ordem pré-estabelecida. Aceitar a mudança. Não confundir entretanto mudar com escapar.
Comer. Deixar-se ser comida por outros corpos/matérias. Incorporar.
Ser pega no espaço e pegar no espaço. Para sempre ativar a memória esquelética e muscular. Desafiar-se. Surpreender-se. Mais de um corpo pode ser incorporado ao mesmo tempo. Olhar para si mesma, olhar para fora, fechar os olhos, reproduzir olhares.
O movimento pode ter diferentes definições, da alta resolução a baixa qualidade.
O movimento pode ter diferentes tamanhos. Este enunciado pode relacionar-se com o anterior.
Cada parte do corpo pode ter uma velocidade. O importante é conceber a vida não como uma forma, mas como uma relação complexa entre velocidades diferenciais. Desenvolver uma mesma história no espaço em velocidades diferentes.
Torcer o tempo. Torcer o espaço. Torcer a coluna. Não há duas histórias, apenas uma única feita de muitas histórias. É uma historia de amor. E como toda boa história de amor, é uma história de fantasmas.
partituras
LIBRETO
Durante algum tempo ocupei-me com a tentativa de produzir trabalhos afastando-os ao máximo de ideias relacionadas à reprodução. No entanto, depois de uma ruptura amorosa, reconsiderei: é possível produzir sem reproduzir?
Como deliberadamente explorar a ideia de reprodução como ferramenta para entender a própria ação de produzir.
Se reprodução pode ser tanto uma ação que carrega repetição, como também um ato biológico no qual é a partir de uma ou duas células que se cria um corpo totalmente novo, como explorar a ideia de reprodução não como ação que faz cópias a partir de originais, mas sim reprodução como potência capaz de gerar uma coreografia a partir da divisão, fusão e multiplicação de células já existentes.
Se o próprio termo coreografia pode ser traduzido como a ação de escrever danças e uma coreografia só pode existir a partir da repetição de uma partitura pré-concebida e/ou ensaiada (consciente ou inconscientemente), quais relações são possíveis entre a ação de coreografar e a ação de reproduzir? É possível coreografar e ao mesmo tempo revelar o processo de composição / escrita dessa coreografia? Se coreografia pode afinal ser tanto a escrita de movimento, como também e especialmente, uma construção artística e social compreendida como um ensaio contínuo que produz arquivo e herança, como coreografias cânones altamente reproduzidos na chamada história oficial da dança coreografam um lugar e uma produção?
A reprodução produz e a memória é inexplicável.
A condição de mulheres pertencentes à esta história oficial da dança coreografa parte da minha produção e posição enquanto uma mulher que trabalha neste contexto e vive onde vivo. Pela via do magnetismo – posso dizer – organizei uma compilação de células cânones criadas ou interpretadas por bailarinas e coreógrafas dessa história da dança. Estabeleci um conjunto de representações de algumas mulheres que foram conectadas com narrativas de casamento, amor impossível e morte. A Coreógrafa tomou forma a partir destas bases.
Em peças como La Sylphide, Gisele, Lago dos Cisnes, A Sagração da Primavera e Night Journey, há sempre uma mulher apaixonada (ou apenas uma mulher que é “A Prometida” a casar) e que também é quem morre, na maior parte dos casos, de amor (ou melhor, de um amor impossível). Nestes trabalhos, estas mulheres apaixonadas são sempre consideradas sub-humanas ou sobre-humanas e, frequentemente, obrigadas a viver em comunidades do mesmo sexo. No processo de criação d’A Coreógrafa, dentro deste material bruto, dediquei minha atenção ao exato momento coreográfico dançado por estas mulheres em seus últimos minutos de vida.
Como estes cânones (oficiais) foram coreografados pelos seus contextos sociais e, ao mesmo tempo, coreografaram um lugar para a mulher na sociedade? Nestes trabalhos, quais mulheres (e quais sexualidades) foram permitidas fazer parte de coreografias com narrativas de casamento e amor? Quais papéis foram atribuídos a cada uma destas mulheres nestas narrativas? Quais mulheres nunca puderam se casar ao final das histórias? Quais mulheres sempre morrem? Quais histórias de amor não foram contadas nesta chamada história oficial da dança? Por que, nestas narrativas, algumas mulheres parecem obrigadas a viver em comunidades com apenas integrantes do mesmo sexo, nas quais a reprodução biológica não parece ser uma possibilidade? O que essas narrativas (e as representações associadas) coreografam? E, para além disso, seria um cânone sempre construído a partir do ponto de vista daqueles que detêm um determinado poder e não a partir do ponto de vista dos corpos que aceitam sua intrínseca condição de vulnerabilidade, ou ainda, só podem viver em condição vulnerável?
Esse específico conjunto de mulheres que organizei em A Coreógrafa toca-me, paradoxalmente, com amor e fúria, paixão e cólera. Elas são tanto parte da minha formação enquanto bailarina, como também parte da minha vida como uma mulher vivendo em uma sociedade patriarcal.
Como criar uma tecnologia que me permita construir (ou ficcionar) uma subjetividade outra que não as representadas nestas peças cânones. Como criar outras histórias de amor. Como criar um espaço no qual essas mulheres possam se reproduzir em algo outro, tornando possível uma comunidade do mesmo sexo se fundir e reproduzir.
Junta d’A Coreógrafa, nosso empenho foi trabalhar majoritariamente com a materialidade pura desses corpos femininos – suas formas, tensões e pesos – fundindo, dividindo ou multiplicando tanto partes microscópicas quanto seus corpos inteiros. Perseguimos uma prática baseada na recuperação e elaboração de uma memória esquelética-muscular capaz de formalizar o encontro de corpos de diferentes tempos em um mesmo espaço. Um processo de escuta, invocação, captura e transformação, sempre a deslizar e nunca se encerrar em uma única forma. Arriscamo-nos na produção de um corpo em suspensão, quiçá ainda considerado sub-humano ou sobre-humano. Talvez ainda seja necessário aprender a viver com os mortos, com o que não é considerado humano ou é terrivelmente humano.
Quem está afinal vivo hoje.
Que viver possa ser a imaginação de futuros que ainda não foram contados em histórias.
Arrastar o passado para o presente reforça-me a ideia de desvio, faz-me questionar temporalidades, possibilita que passado, presente e futuro possam ser ligados, amalgamados e ocupados.
Que a imaginação seja uma prévia das próximas atrações e, que a memória não seja um deserto.
A memória está no espaço cruzando muitos tempos. Mais que uma imagem, que a memória possa ser uma prática de ordem tátil. Algo para se tocar ou se sentir tocada. É provável que hoje o toque tenha caído em desuso. Mas, oxalá, o presente pode produzir arquivo e herança. A vida toma uma forma no encontro de corpos e matérias. Ou toca ou não toca.
Que possamos perceber o que está podendo passar através de cada uma e cada um de nós. E o que não está.
O que está vibrando e o que podemos vibrar.
A Coreógrafa estreou em outubro de 2017 acompanhada de muitas colegas de trabalho, algumas muitas com mais de cem anos. E também acompanhada de parceiras e parceiros mais contemporâneos que cruzaram e cruzam este trabalho comigo. Agradeço sobremaneira cada uma e cada um. Seria impossível sem a vibração destas parcerias. Bruno Levorin esteve ao lado e junto na criação e na dramaturgia desta peça, misturando tudo e lembrando-me que o ar tem espaço e o tempo pode ser torcido como a coluna. Luisa Puterman, na trilha sonora, trouxe ainda mais oxigênio e também serras, degraus e fantasmas. E fez-se a luz com Laura Salerno na iluminação, numa colaboração com Leticia Skrycky que mesmo longe esteve perto, e assistência de Douglas de Amorim sempre a trazer mais energia. As lâmpadas são cheias de gás. Carolina Callegaro, Cláudia Müller e Renan Marcondes, parceiras e parceiro de longa data, vibraram aqui também. Junto com o olhar companheiro de Haroldo Saboia que primeiro traduziu tudo em fotografia, e das parceiras Bruna Lessa e Cacá Bernardes que transformaram isso tudo em vídeo. E não acaba. Agradeço imensamente ao contexto Lote (de São Paulo) por todo apoio. As conversas, olhares e incentivos de Felipe Stocco, Cristian Duarte e Aline Bonanim. As trocas com Luciana Chieregati, Idoia Zabaleta, Natalia Viroga, Nacho de Antonio e todas e todes colegas que encontrei na plataforma Movimiento Sur 2016 e no festival Arqueologías del Futuro 2017. Também não esqueço da programadora Ana Dias que acreditou no projeto desde o primeiro papel, possibilitando tanto a primeira residência do projeto em 2016 quanto a estreia em 2017. Agradeço a cada uma das pessoas, as técnicas, os técnicos, a equipe de serviços, apoio e limpeza, produção, todas e todos que estiveram conosco nestes anos. Obrigada a cada uma e cada um. Fazer seria impossível sem vocês.
É certo que a vida toma uma forma no amor.
Mas, bem, sobre o amor... o melhor agora é pô-lo de lado e finalizar com como as coisas acontecem.
As bruxas e as Sílfides também amam. As bruxas e as Sílfides também podem se reproduzir. Bem poderia ser bruxa com bruxa. Sílfide com Sílfide. Sílfide com Bruxa. Bruxa com Odete. Odete com A Prometida e com A Bela. Não há agora quem pode casar com quem. As cenas são explícitas. Estão todas a crescer. E perder ilusões. E substituí-las por outras.
Isso é de ficar tonta. Não vamos chegar. Tudo que podemos transmitir é incompleto.
Que desse mundinho, Coreógrafas possam partir de supetão para todo planeta.
Vamos continuar.
Clarissa Sacchelli
Outubro/2017 - Novembro/2022