(Não é preciso ler antes de ver)
Bem-vindes.
Estou aqui hoje e agradeço você estar aqui essa noite.
Como você está?
Ou, como você está lidando?
Certa vez eu estava assistindo uma palestra e a palestrante falou: você já percebeu que nós, seres humanos, nós temos todas as nossas vísceras expostas? Olhe, tudo exposto. Só podemos estar aqui porque alguém, ou muitos alguéns, cuidaram muito bem de nós.
Quem ou o que tem cuidado de quem ou o que?
Outra palestra vem a minha mente, uma na qual uma pessoa da plateia citou uma referência que nunca encontrei, mas sempre me lembro, ele disse:
Quem paga seu salário?
E para quem você transfere seu salário, o dinheiro que ganha?
E se a história oficial que aprendemos na escola não fosse baseada em uma história de conquistas e guerras, mas baseada na história dos trabalhos de quem sempre esteve a cuidar?
Imagino:
Se estes trabalhos fossem levados em consideração histórica, como seriam os nomes das ruas?
Rua Faxineira, Rua Enfermeira, Rua Agricultura Orgânica, Rua Amazônia, Rua da Grande Barreira de Corais, Rua Mãe, Rua Gari
Se a história estivesse baseada no trabalho de quem cuida, como seriam os monumentos no meio das cidades?
Talvez, não haveria monumento.
Mas, se houvesse, imagino que as estátuas não seriam tão verticais, ou não seriam tão fálicas.
Se tivéssemos estátuas, imaginaria estátuas se inclinando em bancos de praças, ou apoiadas em uma árvore. Imagine o Cristo Redentor apoiado em uma árvore no topo da montanha. E imaginar um muro no meio de uma cidade não seria nunca possível. Ou alguém a gritar imbrochável em um discurso seria muito mais que vergonhoso. Imagino que não seríamos tão obcecados com a verticalidade.
Aqui uma questão,
porque ainda nos colocamos tanto em uma posição vertical?
E se na chamada evolução, seres humanos não tivessem atingido a verticalidade? Não que a verticalidade seja uma orientação corporal dada a todos os corpos humanos. Mas, e se na chamada evolução, tivéssemos acabado em uma posição inclinada, num ângulo entre quarto apoios e os 90 graus em relação ao solo, algum lugar sempre fora do eixo, nunca exatamente de pé, nunca exatamente deitado?
Nós não seríamos humanos como somos hoje.
Por que segurar nossos corpos de pé todos os dias?
Por que construímos tantas estruturas verticais e permanentes?
Explico que não me coloco aqui a favor de uma orientação horizontal. Não estou indo na direção de trazer/levar/atirar nada nem ninguém ao chão.
O ponto é:
Qual é nossa relação com o chão? Como estamos a nos orientar em relação ao redor?
Inclina-se em algo. Incline-se em alguém.
Como podemos cuidar ao mesmo tempo que nos recusamos a fixar? Como podemos criar montagens que só podem existir porque tudo está simultaneamente fora do eixo, inclinando-se e recusando-se a chamar a ordem? Isso seria onde as coisas selvagens estão.
Não por acaso, um dia, isso se chamará Selvagem.
Bem-vindes.
Nós estamos aqui e isto não se trata sobre o fim da verticalidade, mas sobre acabar com o ponto de vista no qual a verticalidade faz sentido.
Pode ser sobre desconstruir a gravidade ou a fisiologia, mas está para além disso.
Nas últimas semanas estive pensando: se não estivéssemos tanto em posições verticais, para onde olharíamos? Para onde nosso olhar apontaria? Talvez, longe da verticalidade, a visão não seria o sentido que tantos de nós usam tanto.
O que você está tocando agora?
O que você toca quando você toca uma superfície com suas pernas?
Uma vez cruzei com uma página de um livro que dizia:
Tudo que você toca
Você muda
Tudo que muda
Muda você
Nós estamos aqui, tocando e sendo tocades.
Estamos aqui. Estamos em contato.
E não possuímos nada.
Ou, como canta Emicida, tudo tudo tudo tudo tudo que nóis tem é nóis.
Nós chegamos.
Bem-vindes.
Tudo que nóis tem é nóis.
Há selvagem para além das estruturas que habitamos e habitam a gente.
Selvagem é selvagem como amor é amor.
Com amor.
Selvagem
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De Clarissa Sacchelli Coreografia e Performance Carolina Callegaro, Danielli Mendes, Clarissa Sacchelli Luz e Coordenação Técnica Laura Salerno Desenho de Som Luisa Puterman Arquitetura de Som Miguel Caldas Composição Visual Renan Marcondes Diálogo Coreográfico Thiago Granato Diálogo Dramatúrgico Anne Kersting, Niklaus Bein Assistência de Luz Fellipe Oliveira Montagem de Som Chico Leibholz, Gabriel Serapicos, Tomé de Souza Assistência de Produção Iolanda Sinatra, Nina Giovelli Traquitanas de Luz Ale Melo / Perua Estúdio
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Produção Clarissa Sacchelli/ganhapão, K3 Tanzplan Hamburg Coprodução Sesc São Paulo Financiado por Hamburgische Kulturstiftung, Goethe Institut Suporte Administrativo Cais Cultural Apoio Casa do Povo, Camila Klein
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Agradecimentos Ana Rita Teodoro, Associação PARASITA, Clara Gouvêa do Prado, Cláudia Müller, Diogo Coelho Fandangueiro, Fabrício Floro, Gloria Höckner, Grupo de Fandango de Tamanco Cuitelo de Capão Bonito e Ribeirão Grande, Ivan Bernardelli, João dos Santos Martins, José Luiz Ramos, Jura Tamanqueiro, Equipe do K3 Tanzplan Hamburg, Pol Pi, Talita Rebizzi, Venetsiana Kalampaliki, Waléria Ramos